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De anti-HIV a proteção de bichos: veja pesquisas do CNPq que podem parar

Equipe de Izabel Paixão (no fundo, à direita), que busca tratamento alternativo contra HIV - Acervo pessoal
Equipe de Izabel Paixão (no fundo, à direita), que busca tratamento alternativo contra HIV Imagem: Acervo pessoal

João Paulo Vicente

Colaboração para Tilt

24/09/2019 04h00Atualizada em 27/09/2019 10h02

Sem tempo, irmão

  • CNPq não tem dinheiro para pagar bolsas a partir de novembro
  • Para 2020, área de fomento vai perder quase 90% do orçamento
  • Pesquisas de impacto direto na sociedade podem ser prejudicadas

O orçamento para 2019 do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) é insuficiente para fazer o pagamento das 84 mil bolsas da entidade até o final do ano. O dinheiro esgotou-se em setembro —o órgão planeja transferir recursos do fomento para honrar as bolsas de outubro.

Para os três meses restantes (a bolsa de dezembro é paga em janeiro), o CNPq ainda busca uma solução. Na semana passada, o ministro Marcos Pontes, do MCTIC, disse que está batalhando por recursos para cumprir esse compromisso junto ao Ministério da Economia.

Enquanto isso, pesquisas que trazem progresso ao país —como tratamentos avançados para HIV, zika e câncer, ou alternativas para o uso de animais em testes— ficam em modo de espera.

O professor da Universidade Federal de Pernambuco Severino Alves Jr. pesquisa novos métodos de tratamento de câncer.

Entre os seus projetos de pesquisa, estão o desenvolvimento de nanomarcadores para detecção e tratamento de câncer, num modelo conhecido como teranóstico —o mesmo produto é utilizado para diagnóstico e tratamento.

Para isso, são utilizadas nanopartículas com material multifuncional, que tanto emite radiação para tratamento quanto luminescência para monitorar o tumor. Hoje testado apenas em ratos, no futuro o modelo permitiria começar o tratamento mais cedo, assim como reduzir a dosagem dos medicamentos utilizados pelos pacientes.

Além da verba do CNPq, as diversas pesquisas do laboratório são financiadas com recursos de várias origens, como o Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), ligado ao Ministério da Educação, e a Facepe (Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco). Ainda assim, um iminente corte do CNPq pode parar a pesquisa.

Eu precisaria de no mínimo R$ 30 mil por mês para manter o laboratório. E hoje eu não tenho nem R$ 15 mil até o final do ano
Severino Alves Jr., professor do Departamento de Química Fundamental da UFPE e atual coordenador do laboratório

"Aqui no laboratório giram em torno de 50 pessoas, contando com estudantes de iniciação científica, mestrado, doutorado", conta Junior. "Se não pagar as bolsas, eles não têm como vir trabalhar."

O professor é ele próprio bolsista de produtividade científica do CNPq, uma categoria reservada a acadêmicos com alto volume de pesquisas e publicações. Mensalmente, ele recebe cerca de R$ 1.400 mais R$ 1.100 para gastos com bancada —esta segunda fatia ele investe integralmente no laboratório.

"Hoje, na comunidade científica, todo mundo faz isso, tira do próprio bolso. Esse recurso tem feito diferença, uso exclusivamente para consumo no laboratório. Se cortarem, ficarei zerado", afirma.

Alga da espécie Dictyota pfaffii, usada na pesquisa de Izabel Paixão (UFF) - Flickr jome jome/Creative Commons - Flickr jome jome/Creative Commons
Alga da espécie Dictyota pfaffii, usada na pesquisa de Izabel Paixão (UFF)
Imagem: Flickr jome jome/Creative Commons

Anti-HIV em alga e bichos a salvo

Izabel Paixão, professora da Universidade Federal Fluminense e chefe do Laboratório de Virologia Molecular e Biotecnologia Marinha, conduz uma linha de pesquisa que busca em substâncias encontradas em duas algas da costa brasileira capacidade de tratamento ou prevenção contra HIV, herpes, zika e chikungunya.

No caso do HIV, a ênfase é a prevenção. A pesquisa de Izabel atua nessa frente, pois a substância— do grupo dos diterpenos polioxigenados— tem grande potencial inibidor na etapa inicial do vírus HIV, antes dele entrar na célula humana. Comparadas a coqueteis como o AZT, a grande vantagem é que os diterpenos não são tóxicos, diminuindo os efeitos colaterais.

Essas pesquisas são caras, então se esse dinheiro for bloqueado, tudo que investimos até agora vai por água abaixo professora Izabel Paixão

"Nós estamos perdendo alunos. Ano passado eu perdi uma aluna, ela foi para o exterior e continuou lá, não tinha condições de viver aqui sem uma bolsa de pós-doc. Precisamos de alunos não só para o desenvolvimento das pesquisas, mas também para a formação desse recurso humano na pós-graduação", diz

O sentimento de descontinuidade do trabalho também é comum nos depoimentos sobre o tema feitos por pesquisadores. Isabella Delgado, hoje coordenadora de lato sensu da pós-graduação na Fiocruz, no Rio de Janeiro, trabalhou durante cinco anos na Renama (Rede Nacional de Métodos Alternativos ao Uso de Animais), desde que ela foi criada pelo MCTIC em 2012 até 2017.

Isabella tem um projeto de métodos alternativos de testes em andamento financiado pelo CNPq. Em fevereiro, ela prestou contas de uma pesquisa na qual liderou um consórcio de instituições para encontrar uma forma de substituir coelhos utilizados para detectar contaminações pirogênicas —como febre, calafrios e tremores— em produtos injetáveis.

Com o surgimento da Renama, Isabella, que já conduzia estudos do tipo anos antes, viu a área começar a ser valorizada.

"À medida que foi se fortalecendo, surgiram diversos editais e os pesquisadores da área se sentem mais confortáveis", diz ela, que ressalta a proximidade dessa linha com o setor regulatório e político —inclusive para atender demandas da sociedade na redução de experimentos com animais.

Isabella Delgado, pesquisadora da Fiocruz - Reprodução/YouTube Fiocruz - Reprodução/YouTube Fiocruz
Isabella Delgado é pesquisadora da Fiocruz e estuda alternativas para o uso animais em testes
Imagem: Reprodução/YouTube Fiocruz

Agora, o cenário começa a mudar. "Nós tínhamos uma perspectiva de desenvolver algo, propostas interessantes, mas sem agências de fomento a gente fica no meio do caminho, não tem como", afirma Isabella.

Entenda o problema do CNPq

O orçamento do CNPq de 2019 foi deficitário em cerca de R$ 330 milhões - é esse o valor para terminar de pagar as bolsas de pesquisa até o final do ano, um cenário que já era previsto no orçamento federal aprovado em 2018.

O repasse desse montante ao CNPq foi acertado nas negociações feitos no Congresso para liberar um crédito suplementar de R$ 248 bilhões em junho. Mas isso até agora não foi feito.

De maneira emergencial, o CNPq planeja remanejar recursos da área de fomento, utilizada para compra de insumos, equipamentos e financiamento de pesquisas de maneira geral. Essa movimentação precisa ser aprovada pelo Ministério da Economia e seria suficiente para pagar as bolsas em outubro. A partir daí, será necessário uma intervenção externa.

Esse cenário fez com que o CNPq congelasse cerca de 4.500 bolsas que deveriam ter sido disponibilizadas para novos estudantes (situação semelhante a do Capes, que já perdeu mais de 10 mil bolsas).

A proposta do governo Jair Bolsonaro para o orçamento de 2020 prevê o pagamento das 84 mil bolsas ao longo de todo o ano, mas reduz drasticamente o financiamento da área de fomento: de R$ 127,4 milhões para R$ 16,5 milhões.

Uma das possíveis consequências disso é a inviabilização da chamada universal prevista para 2020. A chamada universal é um dos principais meios de financiamentos de pesquisas oferecidos pelo órgão, que pode ser utilizado por projetos de qualquer área. Até cinco anos atrás, ela era anual. Desde então, tem sido lançada de forma bienal —a próxima seria ano que vem.

Foram comprados grandes equipamentos, mas se pararem eu não tenho como consertar, resolver o problema. Vou ter um elefante branco, vai virar sucata. Nós estamos caminhando para o colapso total professor Junior, da UFPE

Izabel, da UFF, tem uma visão semelhante. "Nós trabalhamos com pesquisas que podem contribuir para a melhoria de saúde da nossa comunidade e deixaríamos de contribuir com essas informações, com esse conhecimento, que é função da universidade. É lamentável. É triste e lamentável."

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Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, a Rede Nacional de Métodos Alternativos ao Uso de Animais é reconhecida pela sigla Renama. O erro foi corrigido.